Coluna | Chile: 50 anos depois de chover em Santiago – por Maria Manuel Leitão Marques

María Manuel Leitão Marques 2

Lembro-me bem desse dia 11 de setembro de 1973 em que a esperança de um socialismo democrático se diluiu com a chuva que caiu em Santiago, a senha do golpe de Estado que depôs o presidente eleito Salvador Allende.

Nesse dia, chorámos por um país que não conhecíamos e por um Presidente que nunca tínhamos visto. Nos meses seguintes, continuámos a chorar por muitos daqueles, como Vítor Jara, que morreram no estádio ou desapareceram não se sabe para onde. E cantámos depois ao som dos acordes de exilados que percorreram com os seus instrumentos as ruas de tantas cidades europeias.

A seguir vieram os longos anos de Pinochet, os assassínios fora do Chile, como Orlando Letelier, antigo ministro da defesa de Allende, numa rua de Washington, até que regressasse a democracia, em 1990, e com ela o conhecimento devidamente documentado de todo o golpe, hoje guardado no Museu dos Direitos Humanos de Santiago, inaugurado por Michelle Bachelet quando era Presidente, que visitei no ano passado.

É muito elucidativo ouvir aí a gravação das conversas entre Nixon e Kissinger, pouco depois da tomada de posse de Allende, sobre o modo como era preciso cortar os pés ao Presidente desde o início, prevenindo qualquer sucesso que pudesse ter. Ou saber que CIA tentou mesmo evitar a posse de Allende, em 1970, caindo assim por terra qualquer interpretação de que o golpe foi em parte uma consequência de eventuais erros ou exageros do governo eleito.

Arrepia ainda ver no Museu a parede com as fotografias dos assassinados e desaparecidos, bem como ouvir relato de outras histórias de tortura.

O Chile era a democracia mais estável e consistente de toda a América Latina. Com uma classe média forte, pelo Chile não passou nenhum regime “caudilhista”, como aconteceu em outros países vizinhos, seguindo modas mais ou menos inspiradas nas ditaduras europeias.

O Golpe, orquestrado pelos EUA, ignorou completamente esta diferença. Sem paciência para esperar por novas eleições, aplicou a receita interventiva típica de então, sempre que algum interesse económico americano estava em risco de ser prejudicado num país da América Latina, que era tratada como uma espécie de quintal. O mesmo se passou na Guatemala, em 1954, em nome das bananas da United Fruit. Neste último caso, nem de um regime socialista se tratava. Era apenas democrata, com algumas preocupações sociais inspiradas no “New Deal” de Roosevelt, como bem relata Mário Vargas Llosa no seu romance Tempos Duros.

Essa forma de os EUA lidarem com governos democráticos e os substituíram por ditaduras militares afetou profundamente a América Latina e ainda hoje explica o seu antiamericanismo, que até por vezes nos parece exagerado, como tem acontecido, por vezes, na sua posição sobre a invasão da Ucrânia. É uma história que convém hoje recordar, exatamente quando algumas forças progressistas ganharam eleições em países do centro e do sul da América que por isso merecem governar.

50 anos depois, felizmente, já não chove em Santiago, mas a sua democracia, que era tão singular na América Latina, nunca mais foi a mesma depois desse golpe, criminoso e desnecessário, que deixou no Chile marcas indeléveis.

Fuente: Expreso.pt

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